segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Retorno à cantina dos grelhados


Na última quarta feira, dia 23, tive o privilégio de assistir a mais uma Assembleia Magna da Associação Académica de Coimbra, algo que não fazia desde há vários meses. A minha militância no movimento estudantil viu-se interrompida durante um ano lectivo pela minha estadia no estrangeiro, prolongando-se a interrupção pela particularidade de a elaboração da minha dissertação não exigir uma presença diária na cidade universitária. Assim, não tendo perspectivas de voltar a militar no movimento estudantil de forma activa, retornar uma última vez à cantina dos grelhados para assistir à magna reunião da academia foi deveras interessante.

Verdade seja dita, pouco ou nada mudou. Temos um centrão, dominante desde há décadas na direcção-geral da AAC, que se proclama como o mais intransigente defensor dos direitos dos estudantes, desde que eles se limitem formalmente à luta de gabinetes e às acções de luta simbólica para inglês ver; por seu lado, existe também uma espécie de direita “caceteira”, momentaneamente representada por um indivíduo que responde pelo nome de “Alface”, cujas regurgitações verbais, típicas da direita cavernosa mais ignorante, nos abstemos de escrutinar; temos depois os sectores adictos à JCP, os quais levantam a imperiosidade da luta, desde que cada macaco lute no seu galho, que isso de um cenário de estudantes unidos aos trabalhadores ou aos precários é coisa ruim; por fim, temos um sector mais à esquerda, dinamizado pelos activistas da Frente de Acção Estudantil (FAE) e outros estudantes de esquerda que continuam a pugnar pela necessidade de defender direitos adquiridos, assim como reivindicar outros que ainda se venham a adquirir através da luta incessante contra o governo dos agiotas.

Primeiro, não vou entrar por declarações vazias sobre a AAC, sumarizar a sua “história de luta”, os seus “valores” e/ou “princípios perenes”. Os organismos associativos não possuem uma forma absoluta e imutável. Elas são o que as pessoas fazem delas, assumem as formas que as dinâmicas internas e externas lhe permitem assumir e o seu carácter pode ser historicamente progressivo ou negativo, consoante o contexto histórico-político que as rodeia. É inegável o papel progressivo que a AAC teve na luta contra o fascismo. Já o papel que pode encarnar na luta para ultrapassar as vicissitudes próprias uma democracia podre, é outra história.

A máquina da AAC está eficazmente montada e oleada para manter uma burocracia na direcção, a qual serve com autêntico tampão para a concretização de movimentações reivindicativas por parte dos estudantes. O centrão (JS – JSD) canaliza para aí os seus quadros, os quais protagonizam no seu seio um autêntico “estágio” para a prática política parlamentar . Em grande medida, é a consciência generalizada deste fenómeno, isto é, o dos chamados “tachos” e das maquinações dos “politiqueiros” profissionais, que afasta a esmagadora maioria dos associados de qualquer papel activo na dinamização da AAC. Para constatar isso, basta determo-nos durante dois minutos nos níveis de abstenção dos processos eleitorais, que revelam uma atitude de alheamento por parte dos estudantes que nem os milhões de euros gastos em propaganda pelas máquinas partidárias das J’s consegue subverter.

Durante a minha passagem pelo movimento estudantil, verifiquei que muitas vezes a discussão entre estudantes de esquerda se focava na velha questão: “reformar” a AAC por dentro ou formar um movimento associativo de novo tipo, á margem dos burocratas que insistem em governar o edifício da AAC? Da minha parte, não vislumbrando qualquer alternativa extra-AAC, assumo que não se deve descurar uma intervenção activa no seu interior. Era o que defendia enquanto vivi em Coimbra e assim continuo a pensar. Não excluo a possibilidade de se verificar uma ascensão do movimento estudantil que possibilite um processo de “limpeza interna”, que afaste os burocratas dos cargos de direcção, entregando-a nas mãos dos sectores combativos de esquerda da academia. Tal cenário não é impossível mas, nas condições actuais, é altamente improvável.

Reformar o funcionamento interno da AAC é equivalente a mover uma montanha, constatação que qualquer activista de esquerda que tenha agido nos meandros da universidade coimbrã facilmente subscreverá. Qualquer entidade colectiva institucionalizada, formalmente investida de funções de defesa dos interesses de um dado grupo social, particularmente uma com as dimensões e influência social como a AAC, tende a burocratizar-se e submeter-se à situação política e económica que a enquadra. A elite política e económica ingere e toma o controlo da dita instituição, através de uma casta burocrática. Isto é verdade para associações de tipo sindical, que exercem um papel esmagador no contexto geral da luta de classes, e o mesmo se aplica, grosso modo, à AAC, admitindo que esta se encontra investida de alguma forma, de funções sindicais. Derrubar a burocracia estudantil e assumir o controlo da direcção-geral da AAC é uma tarefa hercúlea, que facilmente consome energias que poderiam ser dispendidas em outras actividades organizativas e políticas.

No entanto, não podemos acriticamente traçar paralelismos entre associativismo no ensino superior e o movimento sindical. Desde logo, uma notória diferença salta á vista: a AAC é um organismo supra-classista, os sindicatos não o são. Somos estudantes, é certo, mas não podemos ignorar a nossa origem de classe. Filhos de trabalhadores, ou os próprios trabalhadores-estudantes, são uma coisa, filhos de industriais ou de banqueiros são outra. Não podemos pretender que os segundos defendam a acção social com o mesmo vigor que o primeiros. Assim, a elite económica e política muito mais facilmente toma conta do movimento associativo estudantil do que do sindical. É isso que se verifica neste momento na AAC. Por muito burocratizada e submetida ao regime político que esteja a CGTP, por exemplo, é difícil para o patronato integrar os seus representantes directos na direcção da central sindical. Ora, tal não parece inverosímil no contexto específico da AAC. A quem tenha algum tempo livre, seria interessante averiguar as origens de classe e proveniência partidária dos sucessivos presidentes das direcções-gerais da AAC. Assim, se esta teve um papel combativo durante a última década do salazarismo em Portugal, como referimos antes, não podemos esquecer que a luta política contra Salazar e Caetano, em certa medida, reflectia o confronto de um sector da burguesia contra outro. A caracterização agora é bastante diferente e certamente que não necessitarei lembrar de qual a classe dos afectados pelos cortes da acção social, e quais os beneficiados com o desmantelamento do Estado Social.

Sem querer escamotear o inestimável valor revelado por colectivos de estudantes intransigentes e combativos, quando inseridos nas fileiras do associativismo estudantil de matriz tradicional, apenas queria apontar as enormes tarefas que se levantam ao agir no interior de um organismo como a AAC. Durante quatros anos, enquadrei a minha militância num desses colectivo, a FAE, de maneira que conheço bastante bem o seu trabalho, o qual só poderia elogiar. A realização da importante manifestação de Novembro mostrou de forma indubitável a importância absoluta que os militantes da esquerda combativa possuem na AAC, na mobilização dos estudantes para o caminho da luta, mesmo quando enfrentam todas as limitações e vicissitudes burocráticas acima referidas. Tal é o caso da FAE, cuja tenacidade e perseverança me resta apenas elogiar.

Da mesma forma, também queria indicar o que seria para mim a situação ideal, ainda que assuma que seja semi-utópica, dada a contextualização actual: a construção de um movimento associativo estudantil de novo tipo. Um movimento associativo estudantil que reflicta os antagonismos de classe, os quais não são neutralizados á porta da faculdade. Um movimento associativo estudantil que organize e represente os sectores desprotegidos dos estudantes: os trabalhadores-estudantes, os estudantes originários da classe trabalhadora e da pequena-burguesia radicalizada, os bolseiros, etc. Ou seja, um movimento associativo estudantil que organize os afectados pelos cortes da acção social e pelo ataque ao ensino superior público. Esta reflexão ocupou-me bastante tempo e, a meu ver, seria um importante passo para um movimento estudantil combativo. Tarefa complicada, bem sei, mas ainda não cobram impostos por sonhar…


P.S: Ademais, parece que o bom senso ainda não se fez ouvir nos meios académicos de Coimbra e as moções continuam a ser votadas ás 5:30 da manhã...

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