sexta-feira, 18 de março de 2011

Divagações à volta da NATO, da ONU e a intervenção militar na Líbia.



Muita tinta tem corrido, nos últimos dias, acerca da resolução relativa à questão líbia, aprovada no parlamento europeu. A atenção direcciona-se não tanto para o conteúdo da resolução no seu conjunto, mas sim para um determinado parágrafo (o nº 10) o qual prevê uma zona de exclusão aérea (i.e., intervenção militar) na Líbia, sob o mandato do Conselho de Segurança da ONU (CSONU), em coordenação com a Liga Árabe e a União Africana. Refira-se que o referido parágrafo, ainda que não mencione explicitamente a NATO, não fecha portas à sua colaboração, ou mesmo direcção das acções militares, desde que sob o aval do CSONU.

O famigerado parágrafo 10 mereceu tanta atenção devido a um simples motivo: pelo que parece, os três deputados do BE contribuíram para a redacção da totalidade da resolução e inclusive um deles, Rui Tavares, votou favoravelmente à intervenção militar ocidental na Líbia, numa clara quebra do programa do partido que o elegeu para o parlamento europeu.

Da minha parte, sinceramente, não quero acreditar que Miguel Portas e Marisa Matias (não digo o mesmo de Rui Tavares, porque sinceramente não conheço o seu programa político e parece notório que se está a borrifar para o do BE) defendam uma intervenção da NATO na Líbia. A bem da verdade, não penso que assim seja. A caracterização que as alas reformistas do BE fazem da NATO coincide, no essencial, com a das alas esquerdistas. Ou seja, a intervenção de um bloco militar imperialista na revolução líbia seria uma ingerência, um avanço político de uma instituição cuja dissolução seria um grande favor à paz no mundo. Desta forma, o principal erro dos deputados bloquistas é o seu tique, tipicamente parlamentarista, de não ver o efeito das resoluções para além do seu texto. De facto, a NATO não é, em altura alguma, nomeada no texto do parágrafo 10 mas, demasiadas vezes, o que não está escrito revela-se a verdadeira essência de uma resolução política.

Em relação á NATO, estamos conversados. No entanto, nem toda esta discussão foi infrutífera. Numa resposta às críticas de Renato Teixeira e de outros escribas do blogue 5dias, Miguel Portas e Marisa Matias terminam com o essencial: ainda que se oponham à intervenção da NATO, clarificam os deputados que não fecham a porta a uma intervenção da ONU. Nem vou gastar muito tempo a bater nesta tecla, pois as conclusões seriam as mesmas de sempre. Grande parte da esquerda continua a caracterizar a ONU como uma enorme instituição inter-estadual, politicamente neutra, supra-classista e, em última análise, portadora de uma feição humanista e humanitária. Ora, tal descrição, quase que metafísica, não podia estar mais errada. A ONU é parte do inimigo que a população líbia em armas agora combate. A ONU é uma das faces, porventura a mais mascarada, do imperialismo ocidental, o mesmo que suportou Kadhafi no poder durante décadas. O mesmo imperialismo que agora se permite a chorar umas lagrimitas de crocodilo sobre as vítimas do louco líbio, apenas porque vê as remessas de petróleo a encarecer. A ONU tem uma carácter de classe, pois é constituida por estados burgueses, e é dominada por uma cúpula formada pelas potências ocidentais, estruturas políticas da burguesia imperialista europeia e norte-americana. Ou passarão os estados a ser supra-classistas e politicamente neutros assim que entram nos corredores do edifício da ONU? Ao escrever estas linhas, não deixo de recordar a intervenção desta organização no Libano, em 2006: enquanto o seu “afilhado” sionista atacava sanguinariamente o seu país vizinho, a ONU não demonstrou a mínima preocupação. A partir do momento em que o Hezbollah tomou a dianteira, aí vai a ONU, em defesa abnegada dos ideais de uma humanidade pacífica! Isto é, foi lá acabar com regabofe e salvar Israel de um merecido par de chapadas…

E que dizer sobre a “democraticidade” de um orgão como o CSONU, constituído pelas cinco maiores potências mundiais (estados como a China, a Rússia ou os EUA, cujas preocupações humanitárias são sobejamente conhecidas!) que, além ocuparem permanentemente o posto de membro do CSONU, dominam a estrutura politicamente e possuem o irrevogável direito de veto?

Conquanto dirigida por uma estrutura com marcadas diferenças em relação à NATO, uma intervenção militar da ONU seria um avanço do imperialismo, que almeja garantir a posse das riquezas da Líbia e empurrar para o poder mais um governo submisso às necessidades energéticas do ocidente. Uma intervenção da ONU seria um desvirtuar da luta dos líbios, seria uma derrota, de facto, da progressividade inerente à revolução líbia. A revolução metamorfosear-se-ia em mais uma criminosa guerra do petróleo.

Os estados ocidentais estão assim tão preocupados com o destino do povo líbio? Ele não precisa da vossa tutela, enviem-lhe armas, preservando a sua soberania política e ele fará o resto. O povo, com um stock de armamento limitado e precário, conseguiu ocupar metade do país, e só começa a fraquejar agora porque o armamento disponível não lhe permite mais. Porque não pode o estado português, por exemplo, enviar algumas das armas nas quais os sucessivos governos gastam uma fatia do orçamento, para ajudar o povo líbio na sua demanda, preservando de forma inequívoca a sua independência política?


Nota: Estas divagações foram tecladas poucas horas antes da aprovação, pelo CSONU, de uma intervenção militar na Líbia. De qualquer forma, assumo que tanto o meu raciocínio como as minhas conclusões não se encontram desactualizadas, pelo que não desisti de a publicar. O BE, por seu lado, no seu site oficial, escamoteia o voto favorável de um seu deputado à dita intervenção militar, numa demonstração adicional de oportunismo político e de falta de ética que, infelizmente, começa a ser regra num partido que se diz anti-capitalista e anti-imperialista.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não vejo que possa haver uma moção intervencionista e não intervencionista ao mesmo tempo. Acredito, como tu, nas boas intenções dos dois deputados do BE, mas de boas intenções...

Renato T.

Tiago Silva disse...

Precisamente.